O limite da ira

De certas experiências se guarda mais do que simples recordações, mesmo porque acabamos nos envolvendo mais do que devíamos. Mas acho que isso não é tão anormal assim. Existem mesmo momentos na vida em que é simplesmente impossível manter a calma. Com certeza você já passou por situações de perder a paciência ou lidou com aquelas pessoas de “torrar o juízo”. Nenhum de nós está imune a isso e não há como fugir dessa realidade, por mais que alguém consiga se dominar. Então surge a questão: o que fazer quando a raiva explode? Devemos mesmo sentir raiva? É possível sentir raiva e não pecar?

Antes de propor soluções – ou mais dúvidas ainda – é preciso lembrar que a raiva não é tão simples quanto parece. Sem medo de errar, podemos afirmar que ela é o sentimento mais difícil de lidar, e talvez nenhum outro sentimento leve alguém tão rápido ao pecado quanto este. Controlar a raiva é tarefa difícil, porque geralmente ela é sentida com muita intensidade e causa um impacto profundo em quem a sente.

Não sei de você, mas me lembro logo de Jesus no episódio da purificação do Templo (Jo 2.13-17). Expulsar cambistas e suas mercadorias do Templo – e isso com um chicote de cordas! – não conheço outra história tão polêmica sobre o Senhor. E por mais inusitado que pareça, este não é um fato isolado. Em outras passagens, vemos o “Príncipe da paz” indignado com a insensibilidade das pessoas (cf. Mc 3.5 e 10.14).

Jesus sentiu raiva? Mas a raiva não é um pecado? – surgem mais perguntas. A palavra “indignação” chama a atenção, principalmente como uma reação do Filho de Deus. Ela indica que Jesus, como homem, estava sujeito a todos os tipos de experiência humana. Contudo, sabemos que como Deus, Ele passou por todas elas sem errar ou pecar. Isto significa, então, que sentir raiva não é pecado. Existe sim uma raiva correta – ainda que pra nosso espanto. E como mostrou o Senhor, ela pode se manifestar adequadamente. O problema não é sentir raiva, mas o que fazemos enquanto sentimos raiva.

Acho interessante entender a ira – ou raiva – como um sentimento que atua ao mesmo tempo em três dimensões diferentes. Pode até parecer estranho, eu sei, mas acho a raiva muito parecida com o taser – arma que dispara choques elétricos. Acho que ele ilustra bem a questão. Como a raiva, o taser oferece a opção de mira. Podemos acertar qualquer um ao nosso redor. Como a raiva, o taser oferece a opção de intensidade. Podemos dar um pequeno choque ou até mesmo matar alguém “carbonizado” – claro que estou extrapolando a ilustração. E como a raiva, o taser oferece a opção de duração. Só o atirador pode definir quanto tempo durará o choque, – mesmo porque dependendo do choque o eletrocutado fica sem reação.

Para entender melhor nossa relação com a raiva, escolhi voltar nossa atenção ao texto de Ef 4.26, um dos mais profundos a respeito: “Irai-vos e não pequeis, não se ponha o sol sobre a vossa ira”. Pois bem, tomando a ilustração do taser temos três dimensões bem definidas. Direção – que pode ser contra nós mesmos, contra coisas e pessoas, e até mesmo contra Deus. “Irai-vos”, diz Paulo sem fazer censura! Mas ninguém está tão pronto a direcionar contra si mesmo a rigidez necessária ao seu próprio bem como está pra fazer contra quem estiver a sua volta. Entendo, então, que preciso sempre direcionar minha ira contra mim e meus erros, ocasionalmente contra os erros do meu próximo e nunca contra Deus. Afinal de contas, ninguém pode conhecer alguém que erre mais do que ele mesmo. Em seguida, temos a intensidade – que pode ser tão forte a ponto de alguém “morrer de raiva”. “Irai-vos e não pequeis”, devemos lembrar. A raiva não deve provocar em nós nenhum tipo de atitude exagerada, vingativa ou impensada. Pelo contrário, a raiva deve ser controlada, benéfica e sensata. Ao sentir raiva, devemos entrar em estado de alerta imediatamente. E por fim a duração – que diz respeito ao tempo que este sentimento permanece em nós. “Não se ponha o sol sobre a vossa ira”. Não devemos manter a raiva sobre certos acontecimentos em nossos corações por mais de um dia, pois “basta a cada dia o seu mal”. Antes, devemos seguir o conselho de Davi: “consultai com o vosso coração em vosso leito, e calai-vos” (Sl 4.4). Estas são, então, as três dimensões que devem marcar o limite da nossa ira.

Isto nos faz lembrar que raramente a raiva termina em glória a Deus. Verdadeiros homens de Deus erraram quando irados. O manso Moisés, que feriu a rocha duas vezes, e a desavença de Paulo e Barnabé em Antioquia servem de exemplo. A raiva sem pecado é um sentimento raríssimo. Como bem já disse Benjamim Franklin: “Tudo o que começa com raiva, acaba em vergonha”. Precisamos aprender muito ainda sobre a raiva com o Senhor Jesus. Mesmo nos momentos mais intensos, Ele optou por restringir sua ira diante de homens falsos e iracundos ao invés de retribuir tudo o que sofreu. Resignação! Esse é o sentimento que levou Jesus a dominar a raiva. É agir para com outro da maneira que ele não merece. É enxergar em nós o que detestamos reconhecer que existe. E principalmente, é retribuir ao Deus que com paciência e sabedoria nos mantém vivos, apesar do que somos, com amor sincero. Eis aí o desafio! Precisamos seguir os passos do nosso Mestre em todos os momentos e até na raiva estar prontos a fazer o bem.

Deus nos abençoe no amor de Cristo!

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