Não se trata de pontos de vista, de definir o que é a verdade [1]. A historiografia lida com o conhecimento objetivo, através de métodos científicos. Fatos são concretos e deixam vestígios. Há variações quanto a extensão e profundidade acerca do regime autoritário que tomou o Brasil, mas historiadores, brasileiros e estrangeiros, reconhecem categoricamente que ele aconteceu.
Desse modo, negar a existência da ditadura militar é falsear fatos objetivos [2]. É um reducionismo ao nível de justificar-se um golpe para evitar outro golpe, sob a pretensa contenção de uma ameaça comunista. É um revisionismo histórico muito grave [3]. A despeito do contexto de polarização da Guerra Fria, é leviano afirmar que existia o risco do Brasil seguir rumos totalitários. Jango era um moderado trabalhista, indesejado por uma ala da direita que, primeiro o afastou com um breve parlamentarismo, e depois o derrubou do poder [4]. O que existiu está mais que atestado em documentos da Comissão Nacional da Verdade: no período militar centenas de pessoas desapareceram sob a custódia do Estado Brasileiro [5]. Afirmar que não houve golpe é mais que desonestidade, é mentira.
O que faz o Presidente Jair Bolsonaro é insistir no viés ideológico, o qual tanto diz combater. Uma narrativa metodológica, que visa insuflar suas milícias digitais e mantê-las aguerridas na necessidade de um inimigo permanente. Inimigo que nem nas urnas parece certo de ter conseguido vencer. O Presidente é cada vez mais refém de seu discurso de campanha.
Bolsonaro, agora, volta as costas ao juramento que fez sob a Constituição e parece ter abdicado de governar para todos. Parece não saber de seus deveres institucionais e políticos [6], de que a instituição da Presidência da República não comporta predileções pessoais. O Presidente preside um país plural, somente possível na tolerância democrática. Entretanto, ele parece não saber. Na verdade não parece. Nunca demonstrou ser diferente.
Instituir a comemoração de uma situação de autoritarismo, que suprimiu direitos e garantias, perseguiu, prendeu, torturou e matou é revelar arrogância, cinismo ou abismal estupidez [7].
#DitaduraNuncaMais
____________________________
[1] Refiro-me à cognoscibilidade da verdade, já que, em História, não existe a verdade, mas o discurso. Por óbvio, um fato histórico comporta inúmeras interpretações, de acordo com as ideologias, valorações e experiências de cada intérprete. O que não se trata de ponto de vista é a materialidade factual de dado acontecimento, pois, sendo de outro modo, cada qual construiria o seu próprio fato.
[2] O Presidente Jair Bolsonaro assim se pronunciou, em entrevista ao "Brasil Urgente", da TV Bandeirantes, nesta terça, 27 de março de 2019: "Temos de conhecer a verdade. Não quer dizer que foi uma maravilha, não foi uma maravilha regime nenhum. Qual casamento é uma maravilha? De vez em quando tem um probleminha (sic), é coisa rara um casal não ter um problema, tá certo? [...] E onde você viu uma ditadura entregar pra oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve ditadura".
[3] Segundo a "Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964", o processo teria obedecido a previsão da Constituição de 1946. Em um trecho ao início, refere-se assim Fernando Azevedo e Silva, atual Ministro de Estado da Defesa: "As Forças Armadas participam da história da nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações. O 31 de Março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação, dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de Presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do Presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15". Contudo, o § 2º do art. 79 da CF de 1946 é de clareza meridiana: "Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição sessenta dias depois de aberta a última vaga. Se as vagas ocorrerem na segunda metade do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita, trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma estabelecida em lei. Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período dos seus antecessores" (grifos meus), o que efetivamente não ocorreu. Portanto, golpe.
[4] Nota: Em agosto de 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, um golpe de Estado foi preparado para evitar a posse de João Goulart, que estava representando o governo brasileiro numa visita à China. Essa visita aumentou a fama que já havia de Jango ser comunista. Com medo da derrota, setores da ala oposicionista entraram em acordo com Jango: este tomaria posse, mas o sistema de governo seria mudado para o Parlamentarismo.
Em 1962, Jango começou uma campanha pela volta ao presidencialismo. Um plebiscito em 1963 reestabeleceu o sistema presidencialista. O principal objetivo de Jango era realizar reformas de base: transformações na organização agrária, tributária e administrativa do país. O lançamento do programa de reformas e o intenso apoio popular geraram novos protestos da oposição, que voltou a planejar um novo golpe de Estado.
Com o apoio dos EUA, que enviou um porta-aviões e outras embarcações para a costa brasileira, os oposicionistas se organizaram para o golpe. Contudo, um dos militares, o general Olímpio Mourão Filho, resolveu antecipá-lo. Moveu suas tropas para o Rio de Janeiro e exigiu a renúncia de Jango no dia 31 de março. No dia 1º de maio, antes que a tropas chegassem, Jango voou para Brasília, mas não encontrou apoio ali. Foi se refugiar no Uruguai.
Com a declaração de vacância na Presidência da República, o presidente da Câmara dos Deputados, Pascoal Ranieri Mazzilli tomou posse. Somente no dia 9 de abril os golpistas resolveram se pronunciar, publicando o Ato Institucional 1.
Neste ato, o general Humberto Castelo Branco foi confirmado pelo Congresso como novo presidente. Este ato também deu super-poderes ao presidente da República, como o de suspender direitos políticos por dez anos, cassar mandatos e demitir funcionários públicos sem intromissão do Poder Judiciário.
Começava o período autoritário que seria conhecido por Golpe de 64.
[5] Em decisão que rejeitou o pedido para proibir comemorações sobre o Golpe de 1964, nesta quinta, 29 de março de 2019, o Ministro Gilmar Mendes fez ponderada análise dos dois lados da controvérsia, pelo que disse: "Sequestros, torturas e homicídios foram praticados de parte a parte, muito embora se possa reconhecer que, quantitativamente, mais atos ilícitos foram realizados pelo Estado e seus diversos agentes do que pelos militantes opositores do Estado. A perspectiva ideológica não justifica o cometimento de atrocidades como sequestros, torturas e homicídios cruéis. Ademais, ainda que fosse possível justificá-las – e não é possível! –, é certo que muitos dos que recorreram a estes delitos não buscavam a normalidade democrática, mas a defesa de sistemas políticos autoritários, seja para manter o regime de exceção, seja para instalar novas formas de administração de cunho totalitário, com bases stalinistas, castristas ou maoístas".
[6] Atente-se que, assim agindo, o Presidente incorre em crime de responsabilidade previsto no inciso 8º, do art. 7º da lei 1.079/50 (Lei do Impeachment), que preceitua tal conduta como: "provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis". Obviamente, para instauração de processo de impeachment, a prática da ação citada é condição necessária, mas não suficiente. O impeachment é também processo político.
[7] Para um maior aprofundamento, leia: GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Desse modo, negar a existência da ditadura militar é falsear fatos objetivos [2]. É um reducionismo ao nível de justificar-se um golpe para evitar outro golpe, sob a pretensa contenção de uma ameaça comunista. É um revisionismo histórico muito grave [3]. A despeito do contexto de polarização da Guerra Fria, é leviano afirmar que existia o risco do Brasil seguir rumos totalitários. Jango era um moderado trabalhista, indesejado por uma ala da direita que, primeiro o afastou com um breve parlamentarismo, e depois o derrubou do poder [4]. O que existiu está mais que atestado em documentos da Comissão Nacional da Verdade: no período militar centenas de pessoas desapareceram sob a custódia do Estado Brasileiro [5]. Afirmar que não houve golpe é mais que desonestidade, é mentira.
O que faz o Presidente Jair Bolsonaro é insistir no viés ideológico, o qual tanto diz combater. Uma narrativa metodológica, que visa insuflar suas milícias digitais e mantê-las aguerridas na necessidade de um inimigo permanente. Inimigo que nem nas urnas parece certo de ter conseguido vencer. O Presidente é cada vez mais refém de seu discurso de campanha.
Bolsonaro, agora, volta as costas ao juramento que fez sob a Constituição e parece ter abdicado de governar para todos. Parece não saber de seus deveres institucionais e políticos [6], de que a instituição da Presidência da República não comporta predileções pessoais. O Presidente preside um país plural, somente possível na tolerância democrática. Entretanto, ele parece não saber. Na verdade não parece. Nunca demonstrou ser diferente.
Instituir a comemoração de uma situação de autoritarismo, que suprimiu direitos e garantias, perseguiu, prendeu, torturou e matou é revelar arrogância, cinismo ou abismal estupidez [7].
#DitaduraNuncaMais
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[1] Refiro-me à cognoscibilidade da verdade, já que, em História, não existe a verdade, mas o discurso. Por óbvio, um fato histórico comporta inúmeras interpretações, de acordo com as ideologias, valorações e experiências de cada intérprete. O que não se trata de ponto de vista é a materialidade factual de dado acontecimento, pois, sendo de outro modo, cada qual construiria o seu próprio fato.
[2] O Presidente Jair Bolsonaro assim se pronunciou, em entrevista ao "Brasil Urgente", da TV Bandeirantes, nesta terça, 27 de março de 2019: "Temos de conhecer a verdade. Não quer dizer que foi uma maravilha, não foi uma maravilha regime nenhum. Qual casamento é uma maravilha? De vez em quando tem um probleminha (sic), é coisa rara um casal não ter um problema, tá certo? [...] E onde você viu uma ditadura entregar pra oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve ditadura".
[3] Segundo a "Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964", o processo teria obedecido a previsão da Constituição de 1946. Em um trecho ao início, refere-se assim Fernando Azevedo e Silva, atual Ministro de Estado da Defesa: "As Forças Armadas participam da história da nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações. O 31 de Março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação, dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de Presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do Presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15". Contudo, o § 2º do art. 79 da CF de 1946 é de clareza meridiana: "Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição sessenta dias depois de aberta a última vaga. Se as vagas ocorrerem na segunda metade do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita, trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma estabelecida em lei. Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período dos seus antecessores" (grifos meus), o que efetivamente não ocorreu. Portanto, golpe.
[4] Nota: Em agosto de 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, um golpe de Estado foi preparado para evitar a posse de João Goulart, que estava representando o governo brasileiro numa visita à China. Essa visita aumentou a fama que já havia de Jango ser comunista. Com medo da derrota, setores da ala oposicionista entraram em acordo com Jango: este tomaria posse, mas o sistema de governo seria mudado para o Parlamentarismo.
Em 1962, Jango começou uma campanha pela volta ao presidencialismo. Um plebiscito em 1963 reestabeleceu o sistema presidencialista. O principal objetivo de Jango era realizar reformas de base: transformações na organização agrária, tributária e administrativa do país. O lançamento do programa de reformas e o intenso apoio popular geraram novos protestos da oposição, que voltou a planejar um novo golpe de Estado.
Com o apoio dos EUA, que enviou um porta-aviões e outras embarcações para a costa brasileira, os oposicionistas se organizaram para o golpe. Contudo, um dos militares, o general Olímpio Mourão Filho, resolveu antecipá-lo. Moveu suas tropas para o Rio de Janeiro e exigiu a renúncia de Jango no dia 31 de março. No dia 1º de maio, antes que a tropas chegassem, Jango voou para Brasília, mas não encontrou apoio ali. Foi se refugiar no Uruguai.
Com a declaração de vacância na Presidência da República, o presidente da Câmara dos Deputados, Pascoal Ranieri Mazzilli tomou posse. Somente no dia 9 de abril os golpistas resolveram se pronunciar, publicando o Ato Institucional 1.
Neste ato, o general Humberto Castelo Branco foi confirmado pelo Congresso como novo presidente. Este ato também deu super-poderes ao presidente da República, como o de suspender direitos políticos por dez anos, cassar mandatos e demitir funcionários públicos sem intromissão do Poder Judiciário.
Começava o período autoritário que seria conhecido por Golpe de 64.
[5] Em decisão que rejeitou o pedido para proibir comemorações sobre o Golpe de 1964, nesta quinta, 29 de março de 2019, o Ministro Gilmar Mendes fez ponderada análise dos dois lados da controvérsia, pelo que disse: "Sequestros, torturas e homicídios foram praticados de parte a parte, muito embora se possa reconhecer que, quantitativamente, mais atos ilícitos foram realizados pelo Estado e seus diversos agentes do que pelos militantes opositores do Estado. A perspectiva ideológica não justifica o cometimento de atrocidades como sequestros, torturas e homicídios cruéis. Ademais, ainda que fosse possível justificá-las – e não é possível! –, é certo que muitos dos que recorreram a estes delitos não buscavam a normalidade democrática, mas a defesa de sistemas políticos autoritários, seja para manter o regime de exceção, seja para instalar novas formas de administração de cunho totalitário, com bases stalinistas, castristas ou maoístas".
[6] Atente-se que, assim agindo, o Presidente incorre em crime de responsabilidade previsto no inciso 8º, do art. 7º da lei 1.079/50 (Lei do Impeachment), que preceitua tal conduta como: "provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis". Obviamente, para instauração de processo de impeachment, a prática da ação citada é condição necessária, mas não suficiente. O impeachment é também processo político.
[7] Para um maior aprofundamento, leia: GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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