A Bíblia e a igreja atual: como as igrejas brasileiras usam a Bíblia na prática [Parte 5]

Partindo da compreensão das premissas teológicas do liberalismo e da neo-ortodoxia, é possível identificar diversas evidências de suas influências na teologia cotidiana da igreja atual. Contudo, tendo em vista o cenário evangélico brasileiro que é, por si só, fenômeno múltiplo e complexo, posto que aglutina expressões dos mais distintos matizes de protestantismo, propõe-se fazer um corte epistemológico, recaindo mais sobre a prática eclesiástica costumeira do que a bandeira denominacional propriamente dita.

A proposição sumária é de que a igreja atual tem praticado os pressupostos heterodoxos, ora liberais, ora neo-ortodoxos, em sua teologia cúltica cotidiana. Sendo assim, duas teses podem ser levantadas, cuja análise se segue.

Primeiramente, a igreja atual pratica o liberalismo em sua busca da experiência com a revelação divina divorciada do referencial das Escrituras. O antidogmatismo abrasador.

Os teólogos liberais obtiveram notoriedade ao promover o desprezo aos dogmas históricos do cristianismo e, sobretudo, ao recusar uma experiência religiosa que gravitasse em torno da revelação escrita da Bíblia. Através da metodologia da Alta Crítica, questionaram a historicidade e autenticidade dos textos da Escritura, minando-lhe, com isso, o caráter de Palavra inspirada e autoridade divina em questões de fé e prática.

Bem assim, grande parcela dos cristãos brasileiros confessos se recusam a reconhecer a autoridade do ensino das Escrituras diante de suas experiências religiosas. Ainda que ostentem uma fé de confissão ortodoxa, o que fazem na prática é conferir autoridade à experiência, sobretudo no que tange a aspectos sensoriais e afetivos, rechaçando o encontro com Deus através da Bíblia.

A estruturação contemporânea dos cultos públicos absorveu muito do misticismo, e as Escrituras Sagradas têm sido, no mínimo, subutilizadas, numa busca pela revelação direta de Deus. Há ainda a questão daqueles que consideram estas práticas como uma abertura ortodoxa às manifestações espirituais carismáticas, ou ainda o surgimento de uma renovação/avivamento espiritual verdadeiro. Entretanto, esta é outra discussão.

Por fim, a igreja atual pratica a neo-ortodoxia como método interpretativo do encontro pessoal com o significado das Escrituras. A hermenêutica existencial.

Os defensores da neo-ortodoxia pugnaram por um resgate da fé cristã, de um lado, tentando remover a linguagem alegadamente defasada da Bíblia em relação à vida contemporânea, e de outro, pretensamente centralizando na pessoa do Cristo a única expressão digna de receber a designação de Palavra de Deus.

De tal proceder, as Escrituras Sagradas foram relegadas ao papel de loteria da revelação divina, figurando ao lado de outras muitas, vez que podem ou não tornar-se a Palavra num encontro com Deus. Nesta mesma senda, a experiência espiritual foi de todo reduzida ao nível do subjetivismo pessoal.

De igual modo, a ampla maioria de igrejas evangélicas brasileiras têm ignorado por completo as distinções entre revelação, interpretação e aplicação do texto, quando muito se considera existir o significado original a ser extraído do texto bíblico. Ocorre que, ainda que o cristão tenha em mente a concepção ortodoxa de inspiração bíblica, a experiência é farta de exemplos em que a Escritura é tratada como um caleidoscópio, de onde o leitor retira os significados que mais lhe apetecem.

Sem dúvida, a igreja atual transporta o conteúdo da revelação divina e o significado autoritativo das proposições bíblicas para o seu ato pessoal de hermenêutica, criando assim a sua “verdade bíblica”, no encontro com o que o texto significa para si própria. E no final, nesse modo completamente particular de cada um selecionar e interpretar o que o texto quer dizer, importa mesmo aquilo que a pessoa quer que a Bíblia diga para ela.

Entretanto, reitere-se que muito de tais comportamentos são resultados do academicismo frio que perdura nos grandes centros de formação teológica do país, como também consequência de púlpitos pobres de fervor piedoso e boa teologia bíblica e pastoral.

A restauração da teologia cristã ortodoxa nas igrejas do Brasil atual deve ser buscada pelos verdadeiros cristãos com oração e práticas didáticas de cristianismo bíblico, máxime por aqueles que genuinamente reconhecem a importância das Escrituras Sagradas para a fé cristã de todas as gerações.
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