A Bíblia e a igreja atual: como teologias contemporâneas enxergam a Bíblia [Parte 4]

3. IMPACTOS DA CANONICIDADE BÍBLICA NO FAZER TEOLÓGICO DA IGREJA ATUAL
3.1. O SURGIMENTO DO LIBERALISMO TEOLÓGICO
Cumpre mensurar as implicações da doutrina da canonicidade bíblica na práxis teológica de ampla parcela do evangelicalismo da atualidade. Para tanto, importa trazer à lume um grande ponto de inflexão histórica, conhecido por liberalismo [7].

Conquanto represente um movimento variegado e complexo, segundo Hordern, há relativo concesso por parte de seus primeiros defensores de que o liberalismo significou uma reconstrução da ortodoxia cristã (2011, p. 47). Por sua vez, Champlin define sucintamente o liberalismo teológico [8] como caracterizado pela oposição a concepções fixas a respeito da inspiração da Bíblia e pelo uso da crítica histórica e de descobertas científicas referentes às crenças religiosas (2013, p. 884).

3.1.1. O uso liberal da Alta Crítica
Importa ressaltar as concepções da teologia liberal sobre a canonicidade da Bíblia e o tratamento que lhe é conferido nesse sistema de pensamento. Os liberais fizeram amplo uso do que se convencionou chamar de Alta Crítica ou Crítica Histórica [9]. O resultado prático destes estudos críticos feitos pelos teólogos dos fins do século XVIII geraram frutos profundamente destrutivos (GEISLER; NIX, 2000. p. 160).

Como produto do Iluminismo, os teólogos liberais encamparam a crítica literária da Bíblia. Champlin observa que eles aplicaram os métodos de avaliação de qualquer literatura à Bíblia, dando vazão a grande ceticismo quanto à sua validade histórica e integridade escriturística, aliando a isso numerosas teorias com pouca base em fatos históricos (2013, p. 886).

3.1.2. O uso liberal da experiência religiosa

O liberalismo teológico também se fez sentir na vida prática da experiência religiosa.  Segundo explicita Hordern, a teologia liberal propõe que todas as crenças sejam submetidas à verificação da razão e da experiência, já que a razão humana é capaz de oferecer as melhores intuições sobre a natureza divina (2011, p.48). Assim, há aberta recusa da fé baseada unicamente na autoridade bíblica.

Obviamente, os ataques da teologia liberal concentrados à historicidade dos textos bíblicos fulminam a possibilidade da experiência de fé cristã. O cristianismo é uma fé historicamente fundamentada sob o evento da ressurreição do Cristo. Nesse sentido, a contundente crítica de Machen é exata, quando diz que a experiência cristã somente nos capacita a sermos cristãos quando ligada aos acontecimentos narrados no Novo Testamento, não sendo corretamente usada se é considerada a despeito de terem ou não ocorrido (2001, p. 76).

Entretanto, o movimento da teologia liberal se viu em grandes dificuldades a respeito da manutenção de sua coerência. Como perspicazmente propugna Hordern, a erudição bíblica do século XX está longe de corroborar os pontos mais cruciais da teologia liberal, contudo, quando os liberais do século XIX firmaram adesão irrestrita à crítica bíblica, jamais imaginariam que, com isso, estavam se comprometendo a voltar às convicções da ortodoxia (2011, p. 62).

3.2. A REAÇÃO DA NEO-ORTODOXIA
Conforme se pôde notar, o liberalismo teológico mostrou demasiado apego aos métodos críticos de tratamento da Escritura Sagrada, expressando otimismo exagerado na racionalidade humana. Neste contexto, um clima de inconformismo gerou uma espécie de renascença teológica (CHAMPLIN, 2013b, p. 524), denominada neo-ortodoxia [10].

A neo-ortodoxia também apresenta variação em suas vertentes. Porém, o movimento foi fortemente influenciado pelo existencialismo [11] de Søren Kierkegaard que, de acordo com Hordern, estruturou seu pensamento insurgindo-se contra as ideias abstratas na filosofia e na religião, baseando-se na consideração do ser humano tal como existe, em sua relação com Deus, o universo e os demais seres humanos (HORDERN, 2011, p. 71).

Geisler e Nix definem apropriadamente a teologia neo-ortodoxa como movimento que tornou a levar a Bíblia a sério como fonte da revelação divina sem, no entanto, abrir mão de seus posicionamentos críticos, afirmando que as Escrituras tornam-se a Palavra de Deus mediante um encontro pessoal entre ambos (2000, p. 19).

Os teólogos neo-ortodoxos podem ser considerados sob duas perspectivas distintas. Os demitizantes, de viés mais rígido; e o barthianismo, que esposou tendência mais branda, a conservar a historicidade das Escrituras.

3.2.1. A teologia neo-ortodoxa de demitização da Bíblia
Um dos expressivos pensamentos da neo-ortodoxia concernente às Escrituras Sagradas refere-se à controvérsia de Rudolf Bultmann. Na vigência da Segunda Grande Guerra, Bultmann publicou um ensaio denominado “Novo Testamento e Mitologia”, que foi responsável por propagar nos círculos de discussão teológica o termo “demitologização” (HORDERN, 2011, p. 113). Sob esse termo, Bultmann defendia uma tarefa teológica de remoção de expressões obsoletas da Bíblia.

Assim, os demitizantes concordam que a Bíblia foi escrita em linguagem mitológica, primitiva, e a tarefa da demitização é despir a Bíblia de seus aparatos lendários e descobrir seu subjacente conhecimento existencial (GEISLER; NIX, 2000, p. 19). Decorre dessa concepção que não pode haver uma revelação objetiva, histórica e proposicional de Deus na Escritura.

3.2.2. A teologia neo-ortodoxa do encontro pessoal
Esta última vertente poder ser considerada uma ala mais reativa em relação à teologia demitizante. Nela, merece todo o destaque o pastor suíço Karl Barth [12]. Descrito como possuidor de caráter forte e piedade pessoal, imbuído de vigor profético e intensidade de propósitos [13] (CHAMPLIN, 2013c, p. 533), Barth foi um dos principais expoentes da neo-ortodoxia.

Hordern acentua que, em 1919, a teologia europeia foi perturbada com seu comentário da Carta aos Romanos, quando ainda era um ministro desconhecido (2011, p. 80), trabalho considerado uma espécie de manifesto de revolta contra o liberalismo teológico (CHAMPLIN, 2013c, p. 533).

Embora seja muito difícil resumir a teologia de Barth, no concernente à canonicidade bíblica, ele afirma que a Bíblia é um mero registro da revelação de Deus aos seres humanos das eras passadas. Assim, a revelação é um encontro pessoal e subjetivo entre o leitor da Bíblia e Deus. Quando, e somente se houver esse encontro, nesse momento a Bíblia torna-se Palavra de Deus (GEISLER; NIX, 2000, p. 20).

Essa concepção é particularmente expressa por Barth em seu livro “A Proclamação do Evangelho”, onde propugna que o Kerigma pretende efetivar a revelação atual, partindo da epifania de Cristo em direção de Sua parousia (2000, p. 8-9). Em outros termos, para Barth, a pregação deve oportunizar a revelação de Deus, movimentando-se do Deus que se revelou em Cristo ao Deus que se revelará na segunda vinda.

Portanto, a neo-ortodoxia barthiana não conseguiu escapar do subjetivismo ao lutar contra o liberalismo e fugir do fundamentalismo. A despeito disso, é de boa valia levar em consideração alguns dos conselhos de Barth a seus alunos, dentre os quais, manter um esforço teológico constante de reforma e revisão de conceitos, não bastando repetir o que disseram os teólogos do passado, além de muita leitura, tendo numa das mãos a Bíblia e, na outra, os jornais (HORDERN, 2011, p. 81), desde que sua própria teologia seja aqui incluída.

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[7] O liberalismo, genericamente considerado, é verdadeira atitude para com ideias e sistemas sociais, econômicos, políticos e religiosos que remetam a dogmas fixos, tomando por método promotor de mudanças o uso da razão e da experiência (CHAMPLIN, 2013, p. 884).
[8] Figuram entre os expoentes da teologia liberalizante: F. E. D. Schleiermacher, Albrecht Ritschl, Adolf von Harnack, Ernst Troeltsch, H. E. G. Paulus e D. F. Strauss. Um dos pontos em comum destes pensadores é a rejeição ao cristianismo como crença ímpar, reputando-o como mais um movimento religioso no desenvolvimento histórico pela busca da verdade (op. cit., 2013, p. 886). A força do movimento remonta ao final do século XVIII e início do XIX, antes das duas grandes guerras mundiais.
[9] A Alta Crítica (histórica) refere-se ao julgamento especializado quanto à data do texto bíblico, seu estilo literário, estrutura, historicidade e autoria (GEISLER; NIX, 2000, p. 160).
[10] O termo neo-ortodoxia significa, literalmente, “nova ortodoxia”, em evidente contraposição à variedade antiga de ortodoxia a que se referencia. As origens do movimento remontam, sobretudo, às ideias teológicas de Karl Barth e ao pietismo de Søren Kierkegaard, além de pensadores como Paul Tillich e Reinhold Neibuhr (op. cit., 2013b, p. 523-524).
[11] Champlin adverte para a diferença entre o existencialismo de Kierkegaard e o de J. P. Sartre. Segundo descreve, para Kierkegaard a teologia acadêmica é mera análise de conceitos bíblicos, sendo necessária a experiência de encontro pessoal com Cristo, que consiste na espiritualidade (2013b, p. 525).
[12] Não é possível mensurar precisamente a amplitude da influência de Barth, visto que todos os teólogos recentes devem a ele em alguma medida e, acertadamente, diz-se que vivemos numa época pós-barthiana (HORDERN, 2011, p. 80).
[13] O pensamento de Barth possui vários estágios, dentre os quais um estágio influenciado pelo calvinismo ortodoxo. Contudo, foi um dos fundadores da Igreja Confessional e figurou dentre os líderes por trás da Declaração de Barmen, resistindo à união entre o cristianismo alemão e o Estado nazista (CHAMPLIN, 2013c, p. 533; op. cit., 2011, p. 80).

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