A Bíblia e a igreja atual: fundamentos da inspiração divina da Bíblia [Parte 1]

A Bíblia é indubitavelmente um livro distinto. A amplitude de sua influência sobre a cultura humana é imensurável e seu processo de perpetuação tem desafiado o poder deletério do tempo. A importância da Bíblia como um documento de referência na literatura mundial pode ser amplamente atestada. Dentre as sobejas evidências há o fato de ter sido o primeiro livro da história a ser impresso, continuando, ainda, a ser o livro mais vendido no mundo, como o é nos Estados Unidos (HARRIS, 2004, p. 11)⁠.


Contudo, nos últimos anos, especialmente a partir do séc. XVIII, presencia-se o surgimento de movimentos de crítica à veracidade, consistência e historicidade da Bíblia como um todo.

Conquanto haja certa confusão no uso do termo crítica aplicado à Escritura, vez que significa a prática do julgamento (GEISLER; NIX, 2000, p. 160)⁠, é sabido e consabido que a teologia liberal questiona os fundamentos da ortodoxa doutrina da inspiração das Escrituras, e com isso, tem contribuído muito para minar a fé cristã sob a alcunha de obscurantismo. A neo-ortodoxia, por seu turno, esvazia o significado de Palavra de Deus dedicado à Bíblia, tornando-a um registro banal de encontros de fé do passado.

Isso posto, necessário perquirir de onde vem o fascínio pujante que a Bíblia exerce sobre a humanidade, bem como analisar o processo histórico de sua composição e, por fim, avaliar a extensão de seu impacto sobre a prática teológica da igreja atual, que hoje a confessa como Escrito Sagrado, oferecendo a contracrítica ao posicionamento, sorrateiro e pernicioso, do liberalismo teológico e da neo-ortodoxia.

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA AUTORIDADE DA ESCRITURA SAGRADA
1.1. A NATUREZA DA BÍBLIA
Dada a autoevidente capacidade que possui a Bíblia de atuar moral, filosófica e esteticamente sobre a produção humana de todos os tempos, poucos se negariam a estabelecer como ponto de partida que, sob uma ótica minimamente razoável, ela é um livro de interesse. Cumpre, então, indagar qual seja a natureza específica de sua constituição, que lhe confere essa alegada autoridade de Livro Divino.

Diversos estudiosos têm apontado para a indivorciável ligação entre as Escrituras e Jesus, sendo este último considerado também controversa personagem. Porém, conforme bem destaca Mears, a vontade de Deus para os homens é revelada na Bíblia, cuja salvação efetuada através de Cristo é o tema central (1997, p. 9)⁠. Assim, as Escrituras são uma definida Filosofia da História, na qual Jesus figura como O fio condutor de sua teologia.

Por seu turno, Geisler e Nix salientam que em Jesus Cristo se encontra o eixo de unificação entre o Antigo e o Novo Testamentos, posto que Sua Pessoa proporciona-lhes a unidade (2000, p. 10)⁠. Consequentemente, do estabelecimento da origem divina da Bíblia depende toda a Cristologia, uma vez que esta resta afirmada e sustentada sobre aquela. Doutra monta, Cristo é a epistemologia da Bíblia, ao tempo em que a Bíblia O declara, por assim dizer, como Epistemologia da Epistemologia (Cl 2:2-3).

1.2. A INSPIRAÇÃO DA BÍBLIA
Se se afirma que Bíblia é a transmissão dessa mensagem de Deus aos seres humanos, segue-se imperativo determinar o significado desse processo. Trata-se do conceito de inspiração[1]. A inspiração pode ser descrita não apenas como obra ou palavras humanas em forma escrita, mas como a própria Palavra de Deus (DOWNING, 2016, p. 5)⁠.

Harris traz a elucidativa imagem de que a inspiração denota um fôlego interno, de modo que Deus estava dentro dos autores no trabalho de produção da Bíblia e ela mesma foi respirada por Deus (2004, p. 13)⁠. Sendo assim, a inspiração consiste numa verdadeira expiração divina[2], na qual Ele emanou conteúdo de conhecimento revelado de Si mesmo aos escritores humanos.

Portanto, na inspiração jaz a natureza peculiar das Escrituras Sagradas. A característica diferencial da Bíblia consiste tão somente no fato de ser, precipuamente, inspirada por Deus e, por isso mesmo, deter exclusivamente o status de escrito autoritativo divino (GEISLER; NIX, 2000, p.10)⁠. A seguir, discorrer-se-á sobre os três elementos do processo de inspiração da Bíblia, baseados na divisão sugerida por Geisler e Nix.

1.2.1. Causalidade divina
Considerando-se a inspiração bíblica um processo, é possível decompô-la em um conjunto lógico de procedimentos que se inter-relacionam num todo orgânico. Segundo os citados autores, a causalidade divina é a baliza primária da inspiração. Por essa acepção, Deus é assim definido como a Causa Eficiente da verdade bíblica e, portanto, é Ele o primeiro fator fundamental da doutrina da inspiração (2000, p. 12)⁠.

1.2.2. Mediação Profética
O nível intermediário da inspiração consiste na mediação profética. Assim se entende que o elemento humano consiste na causa imediata do processo de enunciação das proposições divinas, no qual divisam-se as distintas peculiaridades dos profetas e a Atuação Metafísica que lhes conduziu, de modo a não restar anulada a personalidade humana (GEISLER; NIX, 2000, p. 12)⁠.

1.2.3. Autoridade escrita
Por fim, a autoridade escrita surge como o produto resultante. A Bíblia é a causa final no processo de inspiração profética supramencionado e, nesse sentido, repousa unicamente sobre ela a autoridade divina como escrito divinamente inspirado (op. cit., 2000, p. 12)⁠.

1.3. A GNOSEOLOGIA DA BÍBLIA
Impende refletir sobre o caráter da verdade bíblica de per si, compreendida como as proposições registradas pelos escritores inspirados. Uma gnoseologia da Bíblia deve se ocupar com o modal de interação entre Deus e o ser humano, teorizando sobre as condicionantes de atuação assumidas por ambos e o seu respectivo resultado.

Devido ao conciso propósito desta discussão, das várias teorias existentes sobre a inspiração bíblica, vale destaque a chamada teoria verbal plenária. Conforme observa Harris, o que os escritores bíblicos reivindicam é descrito como impelimento [3], que suas palavras foram as palavras de Deus (2004, p.14)⁠. Desta forma, a inspiração consistiu naquela sobrenatural influência exercida sobre escritores e que repousa nos escritos mesmos (DOWNING, 2016, p. 7)⁠.

A questão, então, gira em torno da amplitude da veracidade do texto inspirado. A inspiração é verbal porquanto se estende às proposições; os textos é que são reclamados pela Bíblia como inspirados (GEISLER; NIX, 2000, p. 21)⁠. Bem assim, a inspiração é plena por ser completa, integral e abranger a Bíblia inteira, em todas as suas partes (op. cit., 2000, p. 22)⁠.

Downing arremata ao definir que inspiração tanto estende-se às verdadeiras palavras, considerada a sintaxe e gramática dos originais, quanto a completude e igualdade do todo (2016, p. 7)⁠. No entanto, urge ainda frisar algumas distinções fundamentais entre conceitos relacionados à inspiração da Bíblia.

1.3.1. O conceito de revelação
A revelação surge como a condição necessária para o conhecimento de Deus. De acordo com Berkhof, o conhecimento que o ser humano adquire de Deus só lhe é possível na medida em que Ele ativamente Se dá a conhecer. A revelação é a condição objetiva para que haja a transmissão do conhecimento de Deus e, mesmo depois que ocorreu, Deus foi quem continuou Se desvelando à razão humana, não o contrário (1990, p. 26)⁠. Em suma, revelação é o processo no qual Deus transmite a verdade sobre Si mesmo e Sua vontade (GEISLER; NIX, 2000, p. 13)⁠.

1.3.2. O conceito de iluminação
Nesta outra faceta condicional há uma operação subjetiva, que tem por objetivo fomentar na consciência humana o conhecimento revelado por Deus. Para Berkhof, a iluminação consiste na atuação do Espírito Santo na razão santificada, levando-a a obter um crescente e contínuo conhecimento de Deus, por sua aplicação ao estudo da Palavra de Deus (1990, p. 26)⁠. Na concepção de Geisler e Nix, iluminação é o ato de apreensão e compreensão da verdade revelada mediate a atuação interior do Espírito (2000, p. 13)⁠.

Portanto, há inter-relação nos processos de revelação, inspiração e iluminação. A primeira se refere a uma comunicação objetiva, a segunda consiste no meio pelo qual a revelação se torna uma proposição inteligível e a terceira é a compreensão subjetiva dessa revelação (op. cit., 2000, p. 13)⁠.

Conforme se afirma hoje em dia, a Bíblia é uma coleção, uma biblioteca nesse sentido. Mas a igreja enfatizou durante toda a História que essa biblioteca é divina, e embora tenha sido obra produzida por diversas mãos, quem a inspirou por completo foi um único Espírito (HARRIS, 2004, p. 190)⁠.

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[1] A Bíblia afirma sua própria inspiração. O locus clássico da doutrina é o texto de 2Tm 3:16, onde se afirma que a Escritura toda foi, literalmente, “soprada” por Deus (ALMEIDA, 2017, p. 2.349)⁠.
[2] Tendo em vista que o significado da palavra grega theopneustos indique o sopro da ação divina na voz ativa, prefere-se conceber a imagem como uma “expiração divina”, ainda que se compreenda perfeitamente que inspiração, como tradicionalmente entendida, refira-se exatamente ao mesmo processo de transmissão da verdade de Deus aos santos escritores.
[3] Harris se refere ao texto de 2Pe 1:21, donde se extrai a moção do Espírito Santo sobre as consciências dos escritores inspirados. A esse processo no qual os poderes naturais humanos não restaram sustados ele denomina de teoria da operação concordante (op. cit., 2004, p.14).

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